Notas a partir de Freud e Malanie Klein

No Brasil e no mundo, o ano de 2020 foi marcante devido ao surgimento de um vírus contagioso e letal que se espalhou pelo planeta de forma rápida e globalizada. Essa primeira frase parece o início de uma narrativa distópica, mas infelizmente não é.
Pessoas em trânsito por diferentes países possibilitaram o rápido espalhamento da COVID-19 pelo mundo. Fomos tomados de assalto pelo desconhecimento do vírus, de suas implicações, de como tratá-lo e de tudo que estaria por vir nos próximos meses.
Já faz mais de um ano que uma crise epidemiológica de larga proporção nos afeta como coletividade humana. Os cientistas, líderes políticos, trabalhadores, famílias, empresas, escolas, todos foram pegos de surpresa e tiveram suas rotinas alteradas e desafiadas. É verdade que em cada país, em cada comunidade, nos diversos estratos sociais, diferentes são os impactos e as formas de lidar com isso que nos acomete.
E no alongar-se do tempo, deste que é um tempo de exceção, de suspensão e incertezas, estamos profundamente afetados como sujeitos, em nossas subjetividades. O grau de letalidade do Covid 19 chegou a proporções consideráveis (atualmente são mais de 425 mil mortes),a vulnerabilidade humana, esta que muitos evitam expor enquanto performam sua presença na vida, está publicamente escancarada. Nos vemos vulneráveis na esfera coletiva, pela impotência e pelos desafios de contornar o vírus e a morte. Estamos psiquicamente vulneráveis enquanto indivíduos, nossa sociedade está profundamente doente. Vivemos um tempo de luto e melancolia.
Posição depressiva e o luto
Com a pandemia do novo Corona vírus o luto tem sido uma realidade imposta pela crise sanitária afetando o estado psíquico de milhares de pessoas. Um tempo de luto em massa. Esse luto se configura pela perda efetiva de muitas vidas, mas não só, estamos enlutando a perda um modo de vida, de hábitos e relações que tínhamos e que foram alterados pelo estado exceção e pelo distanciamento social.
Formas de sociabilidade se alteraram, os meios digitais se tornaram ferramentas indispensáveis e intensamente utilizadas na intermediação das relações humanas. Os espaços de trabalho, de estudo, da família se reconfiguraram e seguem em processo de adaptação rumo a um “novo normal” que vislumbramos, mas que ainda não sabemos qual é. Sem falar na fome, no aumento da miséria,na crise política, social e econômica que se agravaram no Brasil neste período. Entre a aceitação da realidade, sua a negação, as tentativas de adaptação ao novo e muitas vezes a revolta e indignação, estamos exaustos, de luto, melancólicos (deprimidos) e com a saúde mental em agravo.
Em Luto e Melancolia (1915), obra importantíssima de Freud, ele chama a “disposição para o luto” de “dolorosa”. Assim, o estado de espírito penoso marca a tarefa de elaboração que se demanda ao ego quando da perda de um ser amado ou “de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém” (Freud, 1969:249). Strachey, seu tradutor para o inglês, aponta que luto (do alemão ´trauer´) pode ser entendido como o afeto da dor bem como sua manifestação externa.
A elaboração do luto consiste na retirada de toda a libido investida nas ligações com o objeto perdido, é preciso realizar o desligamento da libido de cada memória e esperança vinculada ao objeto. Esse trabalho toma tempo e requer um dispêndio considerável de energia de investimento para que “cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e supercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas” (Freud, 1969: 250). O tempo que isso toma para acontecer constitui o luto, que não decorre sem resistências e oposição já que “as pessoas nunca abandonam de bom grado a posição libidinal” (Freud, 1969:250).
Melanie Klein acrescenta um ponto à noção de Freud sobre a elaboração do luto. Mostra que além de lidar com a perda de um objeto de amor, o luto nos coloca em contato com fantasias inconscientes enraizadas no ego em nossa primeira infância e, de alguma forma, repete a “situação emocional vivida pelo bebê durante aposição depressiva”(Klein,1952:102) momento em que ele sentia medo de perder sua mãe, seu primeiro e grande amor.
Não haverá espaço para me alongar em detalhes sobre a posição depressiva, estagio vivido pelo bebê a partir do segundo trimestre de vida. Gostaria, contudo, de marcar que, para Melanie Klein, nesse período o ego avança em seu processo de integração e de síntese na relação de objeto, que até então era uma relação de objeto parcial. Se nos meses anteriores, na posição esquiso-paranoide, o bebê foi introjetando dentro de si o seio materno, de forma cindida nas imagens de um o seio bom e um outro seio mal, na posição depressiva ele já percebe a mãe como pessoa, o seio deixa de ser o principal objeto, ele agora faz parte da mãe, que passa a ser introjetada como um objeto completo.
O conflito entre amor e ódio já vivido em relação ao seio materno agora se desloca para a pessoa da mãe, mas de forma mais integrada, de modo que ele encontra uma mãe “boa” e uma mãe “má” na mesma figura. Disso resultam a ansiedade depressiva e o sentimento de culpa. Sim, o bebê passa sentir culpa devido aos impulsos destrutivos que sente e que se direcionam ao objeto amado quando este não o atende. Sua voracidade, advinda dos impulsos de agressividade, é uma ameaça aos objetos internos e externos que ele constituiu. Assim, o bebê se percebe como agente provocador da perda potencial de seus bons objetos.
O que me chama atenção e destaco como um aprendizado importante que retiro da obra de Klein é que no luto normal, o luto não patológico, o sujeito faz um movimento de estabelecer o objeto amado dentro de si e, ao fazer isso no trabalho de elaboração do luto, ele reinstala também, além deste objeto, todos os outros “objetos internos amados que ele sente ter perdido” um dia. Quando a dor vem, “o pesar salopa o sentimento de posse segura dos objetos internos amados pois revive as ansiedades arcaicas acerca dos objetos danificados e destruídos - de um mundo interno despedaçado” ( Klein. 1957:102).
Assim, o luto vivido por um adulto, por exemplo, carrega em si a dor da perda do objeto no momento atual, mas também reaviva e reinstala a dor do luto originário, vivido na posição depressiva, quando da perda dos bons objetos internos, quando do medo da perda de sua mãe, objeto originário tido como ideal.
Em suma, o trabalho de luto é, portanto, um trabalho de elaboração psíquica fundamental para o sujeito superar a dor da perda. O luto pode ser visto como um processo de cura na medida em que oportuniza a aceitação da perda do objeto idealizado (Dunker, 2021).
Considerações finais
A pandemia do novo Corona vírus instalou um mal-estar generalizado, senão em todos, numa boa parcela da população. Para aqueles afetados, direta ou indiretamente pelas mortes e demais perdas possíveis, há uma chance de retorno à posição depressiva ou a sentimentos depressivos. A elaboração do luto segue sendo um caminho possível para a superação da melancolia e de reconexão com a pulsão de vida.
Para expressar como se sente essa reconexão, Freud comenta que “quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido” (Freud, 251). Klein (1952)aponta que superar o período de luto é, portanto, reencontrar a confiança nos bons objetos, no amor e na esperança, parte vital do ego constituída graças a introjeção do seio bom (e dos demais bons objetos) em situações de gratificação e felicidade na fase mais remota da vida.
Coletivamente, no âmbito da cultura, neste tempo pandêmico, não tem sido fácil encontrar tal gratificação. A relação com essa esfera não tem fortalecido nossa confiança nos bons objetos. Pelo contrário, parece que há um retorno recorrente do mal-estar, do objeto “ruim” que nos persegue, e que retorna a cada vez que temos um novo susto ou que chega uma má notícia.
O que Melanie Klein nos ensina com seu programa, e que me parece inspirador para este momento desafiador, é que: se no primeiro ano de vida o sujeito consegue transcorrer a posição esquiso-paranoide, superando as angustias persecutórias desta fase, passando então à posição depressiva e acionando o luto como recurso de reparação dos sentimentos depressivos proórios dessa segunda fase, há um caminho aberto para a prevalência dos “bons” objetos internos sobre a pulsão de morte, o instinto agressivo e à falta de confiança. Se aprendemos quando criança a renunciar aos nossos instintos de agressão, escolhendo pelo cuidado e o bem-estar do objeto amado, então temos recursos para promover em outros momentos “a vitória decisiva dos bons objetos (...) a vitória do amor sobre o ódio” (Geets, 1977:110).
Referências bibliográficas:
DUNKER, Christian. EntrevistaàRevista Cult. Maio, 2021.
FREUD,Sigmund. Luto e melancolia (1915). In Obras Completas. Volume XIV. Ed.Imago, 1969.
GEETS,C. MelanieKlein.Bibliotecade Estudo Iniciação-debate. EdiçõesMelhoramentos. Editora USP,1977.